UNO Agosto 2014

A revolução (pendente) em questões diplomáticas

011_2N o século XXI, com algumas exceções, a ação externa dos Estados se caracteriza por seu alto grau de transparência e previsibilidade. Os acordos são negociados de maneira privada, mas seu conteúdo é conhecido e difundido em tempo real pelos pr óprios atores. A interdependência não é mais um fator de paz, e sim uma sólida variável da realidade, determinante para o progresso e a segurança. Longe do cínico ditado do Sir Henry Wotton (quatro séculos atrás) de que “o diplomata é um homem honesto que é enviado para o exterior para mentir pelo seu país”, hoje, a ação diplomática é realizada de forma transparente. A cooperação e a transparência dos objetivos políticos são cruciais nas relações internacionais da maioria dos Estados, em um ambiente global muito mudado, em processo de mudança e volátil.

Mas a diplomacia continua vertebrada, em geral, com velhos padrões e estruturas, e é incapaz, por exemplo, de tornar hierarquia e colaboração ações compatíveis. Embora tenha havido melhorias substanciais, os processos de adaptação e modernização foram inerciais e, em grande medida, superficiais, diante das profundas mudanças no cenário mundial em que a diplomacia atua.

Em um mundo cada vez mais complexo, apolar no âmbito político e multipolar no âmbito econômico, a globalização e o acesso generalizado aos meios de comunicação para se posicionar com relação a ela alteraram os parâmetros em que tradicionalmente se assentava o poder, a política e, também, a prática das relações internacionais. Hoje, a IED das empresas espanholas equivale a 40% do PIB do nosso país, 87 das 150 maiores economias do mundo são multinacionais e apenas 67 são Estados. Neste planeta na rede do século XXI, o Facebook e o Twitter ocupariam o segundo e o quarto lugar, respectivamente, entre os territórios mais povoados, atrás da China e da Índia.

A empatia, que não é ensinada nos institutos diplomáticos, é hoje um requisito indispensável para uma nova diplomacia, aberta, confiável e eficaz.

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O impacto transformador das tecnologias da informação e a comunicação afeta todas os âmbitos: o externo é interno, o local é global, e o global é próximo. Tempo e distância entram em colapso, noções como democracia e participação se entrelaçam com as noções de cidadania e transparência. A informação não é mais um privilégio do poder, e vivemos um claro processo de desintermediação, no qual os filtros entre o poder político e os cidadãos desaparecem ou deixam de existir. O ciclo de ação do cidadão na rede não é de quatro anos; pois age, opina e exige respostas em um fluxo constante e ininterrupto.

Embora crises como a da Ucrânia e do Mar da China revivam a geopolítica do século passado, novos desafios e ameaças ganham mais importância no cenário mundial: as catástrofes naturais; a mudança climática, que as torna mais intensas e frequentes; a transmissão de doenças; os tráficos ilegais; as assimetrias no bem-estar e no poder econômico; os avanços tecnológicos e seus derivados, tais como o cibercrime, o ciberterrorismo e as violações da nossa privacidade. São riscos que desconhecem fronteiras e diante dos quais a globalização e a interdependência nos tornam ainda mais vulneráveis. De acordo com Habermas, “a globalização desses perigos reuniu toda a população mundial, a longo prazo e de forma objetiva, em uma comunidade involuntária de riscos constantes”.

Agir em um cenário global conforme descrito acima, liderar, porém compartilhar de forma cooperativa o espaço da ação diplomática com outros atores não estatais, ou elaborar estratégias de Diplomacia Pública que seduzam outras sociedades fortalecendo a imagem e a reputação do nosso país, exige uma profunda transformação nos processos de elaboração e execução das políticas externas e seus instrumentos.

Uma transformação real e abrangente da cultura e da prática diplomática, que inclui formação, planejamento estratégico, execução cooperativa, e sua avaliação não pode ser adiada.

A ação externa e diplomática de um país é a mais global das políticas internas, e é relevante tanto para os próprios cidadãos quanto para os de outros países com o qual se relaciona. O paradoxo é que o sucesso da missão central da diplomacia, “gerir a diferença”, consiste precisamente em diluir essas diferenças, em construir áreas de atração e de cooperação, em interagir com as sociedades de outros países para que as posições e as ações dos seus governos possam convergir com os nossos interesses e objetivos.

A revolução nas questões diplomáticas exige um grande impulso político, que, como indica o recente relatório do Real Instituto Elcano, é preciso conectar o projeto interno com a ação/política externa, com profundidade estratégica, incluindo a flexibilidade e a capacidade de resposta. É necessário que os próprios diplomatas e outras partes interessadas, empresas ou pessoas, sintam-se partes do ciclo da ação externa.

O desafio transformador é, em suma, tornar essa nova diplomacia uma realidade eficaz, que, como define David Miliband, “é ao mesmo tempo pública e privada, tanto de massas quanto de elites, em tempo real e, ao mesmo tempo, deliberativa”.

Rafael Estrella
Ex-embaixador da Espanha na Argentina
Ex-embaixador da Espanha na República Argentina (2007-2012); Vice-presidente do Real Instituto Elcano e presidente da Rede Ibero-americana de Estudos Internacionais. Especialista em relações internacionais, presidiu a Comissão de Assuntos Exteriores do Senado e foi Porta-voz do Grupo Socialista na Comissão de Assuntos Exteriores do Congresso dos Deputados. Entre 2000 e 2002 foi presidente da Assembleia Parlamentar da OTAN. Autor de inúmeros artigos em revistas e obras coletivas sobre assuntos como o Oriente Médio, o Mediterrâneo, a Europa, a Segurança Europeia e relações transatlânticas, a relação UE-Mercosul, ou a diplomacia pública. @Estrella_Rafa 

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