UNO Agosto 2014

O processo que culminou em Haia

13_2Embora qualquer data de início de um processo histórico possa ser arbitrária, neste caso, não é estabelecer o início de 1986, durante o primeiro governo do presidente Alan García, quando o então ministro das Relações Exteriores Allan Wagner, aproveitando a sua visita ao Chile, instruiu que o embaixador Bákula levantasse a questão diante do ministro das Relações Exteriores do Chile. Os argumentos que expôs se tornaram seu já famoso Memorando.

Quase vinte anos mais tarde, em 2004, quando o Peru já havia concluído os acordos de Brasília com o Equador, e os de Lima com o Chile, o chanceler Rodríguez Cuadros levantou novamente a questão, mas, desta vez, de forma peremptória: ou nos sentávamos para negociar ou ele levaria o caso para o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia.

Nas relações entre os Estados, os problemas não resolvidos se tornam mais complexos com o passar do tempo.

Em 2006, com a mudança de governo no Chile e no Peru, assumem Michelle Bachelet e Alan García, que pertencem à mesma família política, a Internacional Socialista. Pensei que esse motivo poderia abrir um espaço de entendimento. Diplomata durante toda a vida, imediatamente, propus ao ministro de Relações Exteriores do Chile que iniciássemos uma negociação, ao mesmo tempo em que o presidente García levantava sua tese das cordas separadas, ou seja, desenvolver um relacionamento crescente entre os dois países e separar a questão da delimitação marítima. Pouco tempo depois, ficou evidente que não era possível qualquer negociação e que a primeira opção para resolver pacificamente uma disputa era negada pelo Chile. Estávamos na situação de continuar sem resolver o problema ou buscar outro mecanismo para solucionar as nossas diferenças, neste caso, no Tribunal Internacional de Justiça.

Tenho que dizer que recorrer ao Tribunal de Haia não foi uma decisão fácil. Contra isso, conspiravam antecedentes pouco claros, se não contraditórios e com certa falta de zelo no passado, no que diz respeito à manipulação desta questão. Após uma profunda reflexão, concluímos que, embora possa ser mais confortável manter sem resolução uma situação de conflito e tentar mantê-la sob controle, nas relações entre os Estados e, especialmente, sobre questões relativas à soberania, com o passar do tempo, os problemas não resolvidos  tornam-se mais complexos e mais intensos, afetando o relacionamento entre as partes. Consciência de História, perspectiva de Estado e compromisso com o país e seu futuro foi o que inspirou o presidente García e a mim a buscarmos a paz recorrendo ao direito internacional.

13Tínhamos pela frente uma enorme tarefa de preparar o processo e todos os documentos para sustentá-lo. Todos nós o assumimos com um sentimento de responsabilidade, conscientes das fraquezas da nossa posição, mas determinados a não nos deixarmos levar pelo exercício estéril de acusar o passado. Nesse processo, fomos encontrando pontos que ninguém havia vislumbrado antes e tentamos, acredito que com sucesso, compensar as nossas fraquezas. Tudo foi feito com rigor e discrição, sem a intenção de vencer batalhas fictícias na mídia. Era necessário convencer o Tribunal, e, para isso, era preciso evitar a tentação da figuração e a ostentação.

E, ao mesmo tempo, tivemos que fazer um grande esforço para evitar que o Equador, que sempre havia apoiado a tese chilena sobre a existência de um acordo de limites marítimos na sua qualidade de signatário da Declaração de Santiago, de 1952, fosse um terceiro interveniente em Haia. O presidente García tinha conseguido estabelecer uma relação de mútua simpatia com o presidente Correa e pôde falar com liberdade para esse propósito. Portanto, após uma reunião presidencial em Loja, Equador, os ministros dos dois países receberam instruções para avançar nas negociações que atendessem aos interesses de ambas as partes. Dessa forma, chegamos ao acordo de limites marítimos com o Equador, em 2 de maio de 2011, que servia não só para terminar de maneira formal com a questão da fronteira com o Equador, mas também para endossar a tese peruana de que a Declaração de Santiago nunca foi um tratado de limites.

Tudo foi feito com rigor e discrição, sem a intenção de vencer batalhas fictícias na mídia.

Em um verso, o poeta Antonio Cisneros se questionou: “o que se ganhou ou se perdeu entre estas águas?”. Quero usar esse verso para explicar a decisão começando por lembrar o que foi pedido ao Tribunal: determinar se existia ou não um tratado de limites marítimos. De acordo com o Peru, não existia, mas o Chile argumentava que havia. Atribuímos ao Chile o ônus da prova, mas não foram capazes de mostrar que havia um acordo formal. E essa foi a conclusão do Tribunal. Não havia nenhum acordo; portanto, o limite não era paralelo às 200 milhas ou ad infinitum, como o Chile defendia. No entanto, demonstrando criatividade e originalidade, o Tribunal estabeleceu o conceito de acordo tácito para definir o status quo estabelecido pelo Acordo Fronteiriço de 1954 e pelas Notas Diplomáticas de 1968 e 1969. Porém restringiu seu limite para 80 milhas, em conformidade com o critério de pesca registrado na região antes de 1986. Ao traçar uma linha equidistante a partir dessa milha, o Tribunal concedeu ao Peru acesso a 22 mil quilômetros quadrados que haviam estado sob a soberania do Chile e 28 mil quilômetros quadrados, que o Chile pretendia ou que era seu mar presencial ou que eram águas internacionais, e não reconhecia a soberania peruana. No total, ganhamos 50 mil quilômetros de espaço marítimo, equivalente a 75% do solicitado no processo. Dessa forma, incorporamos um vasto espaço marítimo ao nosso domínio e acabamos de estabelecer nossos limites, quase 200 anos após a nossa Independência.

Nem o processo nem a decisão foram fáceis. A elaboração do processo levou mais de um ano. Quanto à decisão, tivemos que desmistificar aquelas “verdades assumidas” havia muito tempo. Durante seis anos, um grupo de profissionais de alto nível, com talento e esforço, produziu um processo impecável. Os peruanos devem se sentir orgulhosos e felizes por imaginar um futuro de paz e de maior integração com o Chile.

José Antonio García Belaúnde
Diplomata e político peruano
Diplomata e político peruano, foi foi ministro das Relações Exteriores do Peru entre 2006 e 2011, durante o governo do presidente Alan García. Durante o tempo em que ocupou este cargo, realizou iniciativas e acordos bem-sucedidos, que contribuíram para melhorar as relações diplomáticas com os países vizinhos, bem como consolidar tratados com outros países, tais como os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão. Anteriormente, foi diretor-geral e assessor da Comunidade Andina, secretário da “Comisión y del Consejo de Cancilleres”, diretor-secretário da “Junta del Acuerdo de Cartagena” e exerceu cargos diplomáticos como representante do Peru em vários países e organizações, tais como ALADI, Estados Unidos, Equador, México, Espanha e nas Nações Unidas, entre outros.

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