UNO Agosto 2013

Os riscos da desigualdade salarial

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Proponho uma adivinhação. Aqui vão algumas recentes declarações de um político para ver se acertam o autor: “É preciso reduzir as remunerações dos conselhos de administração e dos altos executivos das grandes empresas da Ibex 35”. “A solidariedade é imprescindível e começa fundamentalmente pelos que têm mais”. “Estamos pedindo esforços ao espanhol médio e aos que estão em situação mais privilegiada, estes devem ser o exemplo neste momento”. “É preciso acompanhar de muito perto todos os excessos nas grandes empresas”.

Não foi Cayo Lara quem as fez, nem Sánchez Gordillo, nem Alfredo Pérez Rubalcaba, nem Alfonso Guerra, nem Cándido Méndez, nem Ignacio Fernandez Toxo, nem ninguém do Movimento 15M. As palavras não saem da esquerda política: são todas de Luis de Guindos, ministro da Economia do governo conservador de Mariano Rajoy. Não são sequer declarações off the record. Foram ditas publicamente, durante uma entrevista realizada em setembro, à emissora de rádio Onda Cero. Passaram relativamente despercebidas, mas são muito sintomáticas: demonstram que algo está acontecendo na sociedade e na política, na percepção dos cidadãos frente à desigualdade salarial. Alguém poderia imaginar, há alguns anos, que um ministro das Finanças de um governo de centro-direita questionasse a remuneração ou os amplos benefícios de grandes empresas privadas e fizesse um chamado público à “solidariedade” de seus executivos? O que mudou nesta crise para provocar uma mensagem assim?

Em toda Europa, desde que a crise começou, os governos de uma ou outra inclinação política estão questionando as remunerações dos altos executivos

As declarações de Luis de Guindos não são, tampouco, um fenômeno espanhol. Em toda Europa, nos últimos anos, os governos de uma ou outra tendência política começaram a questionar as remunerações de altos executivos, especialmente no setor financeiro, onde muitos dos prejuízos são pagos pelo contribuintes. A própria Eurocámara aprovou, em 2008, no início da crise, quase por unanimidade, uma resolução criticando os salários dos executivos de topo “que tendem a crescer desproporcionalmente em relação aos salários regulares, o que desincentiva o apoio a uma política salarial responsável”. O presidente do Eurogrupo, o conservador Jean-Claude Juncker, também deixou claro: “Continuamente pedimos moderação salarial aos interlocutores sociais, mas os trabalhadores veem que, enquanto nós sugerimos que sejam moderados para eles, outros atores da economia estão desfrutando aumentos ilimitados”.

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A reação dos políticos é uma resposta à pressão da opinião pública ante às cifras difíceis de explicar aos eleitores: os dados são bastante claros. Em 1968, o diretor-executivo da General Motors ganhava 66 vezes mais que um trabalhador médio da empresa. Hoje, o CEO do Walmart ganha 900 vezes mais, como explica o historiador Tony Judt, em seu último livro antes de sua morte: Algo está errado. Este disparatado aumento nas remunerações de diretores estão ligados à produtividade? As estatísticas mostram que não: em plena crise, os salários dos altos executivos não pararam de subir. De acordo com dados da Comissão Nacional do Mercado de Valores Mobiliários (CNMV), a remuneração média dos diretores do IBEX 35 subiu 4,4% em 2011. Também cresceu em 3,1% o salário médio para os altos executivos. Cabe dizer que os lucros ou ações dessas empresas não foram, nem de longe, equivalentes. Estes aumentos tampouco foram a anedota de 2011: estão sendo registrados há décadas, sem crises ou com ela. Mas é agora, com uma situação econômica que leva grandes setores da classe média à beira da exclusão e quando se dispara a irritabilidade da sociedade, que se vê até mesmo um ministro de Economia conservador ser forçado a questionar publicamente a situação. É fácil entender o porquê.

O aumento da desigualdade salarial é preocupante não apenas pela falta de exemplaridade em tempos de crise: é também um risco real para toda a sociedade. A desigualdade econômica no longo prazo não é apenas um problema ético ou de solidariedade para os países: também afeta a eficiência. O mais recente livro do prêmio Nobel Joseph Stiglitz, O preço da desigualdade, explica muito bem. “A desigualdade reduz o crescimento e a eficiência”, escreve Stiglitz, falando sobre os Estados Unidos, embora seu discurso também se aplique à nova Europa de austeridade. “A falta de oportunidade implica que o ativo mais valioso com o qual a economia conta (seu povo) não é utilizado plenamente. Muitos dos que estão no fundo, mesmo no meio, não podem concretizar seu pleno potencial, porque os ricos, que necessitam de poucos serviços públicos e temem que um governo forte redistribua a renda, usam a sua influência política para reduzir os impostos e cortar gastos do governo. Isso leva à falta de investimento em infraestrutura, educação e tecnologia, o que diminui os motores do crescimento”.

Em 1968, o diretor-executivo da General Motors ganhava 66 vezes mais que um trabalhador médio da empresa. Hoje, o CEO do Walmart ganha 900 vezes mais

Além da sociedade como um todo, o crescimento excessivo dos salários dos altos executivos tem uma consequência direta: os acionistas. São eles os primeiros a perder com salários que não têm a ver com a produtividade. Nas palavras do ex-presidente da CNMV, Manuel Conthe, publicadas no ano passado no jornal espanhol El País: “Se o mercado fosse altamente competitivo, com processos de seleção em todo o mundo, se aplicaria a lógica de salários do mercado para ser o melhor em algo… Mas na Espanha, a provisão de cargos de diretores se faz no escuro e com taquígrafos, entre as partes vinculantes, e em vez disso, se aplica salários de mercado mais ferozes”. Dito de outra forma, vindo da boca da nada suspeita de comunismo, Angela Merkel: “Compreendo que ganhe muito quem muito faz por sua empresa e seus empregados, mas por que se deveria afogar em dinheiro os incompetentes?”

Esta política salarial onde o alto executivo sempre ganha, não importa o que aconteça à sua empresa, não é apenas injusta com os acionistas porque se deteriora a rendibilidade. O principal problema está em outro lugar: com uma equivocada política de recompensas para executivos é possível prejudicar a sobrevivência de uma grande empresa, ao provocar uma desmesurada assunção de riscos e de decisões de curto prazo que, finalmente, acabam sendo suicidas.

O aumento da desigualdade salarial é preocupante não apenas pela falta de exemplaridade em tempos de crise: é também um risco real para toda a sociedade

Obviamente, nenhum proprietário de uma empresa tomaria decisões que provocassem a elevação de suas ações na bolsa conscientes de que, a longo prazo, são decisões tóxicas. Mas quando os salários estão vinculados ao mercado de ações –com mecanismos como as stock options–, o interesse dos proprietários de uma empresa e de seus gestores nem sempre coincidem: podem ser diametralmente opostos e, eventualmente, causar o enriquecimento dos executivos às custas da falência da empresa. Esse perverso modelo de recompensas –um jogo onde ganha o executivo que assumir grandes riscos que acabam arruinando a empresa– foi justamente um dos motivos que levaram ao colapso dos grandes bancos de investimento ocidentais durante a crise das subprime. Capitalismo em sua forma mais pura? Pelo contrário: falta de transparência, falta de governança e falta de informação. Precisamente o pior que pode acontecer a um mercado.

Ignacio Escolar
Jornalista e comentarista político
Fundador do jornal Público e seu primeiro diretor. Autor do blog político mais seguido na Espanha, www.escolar.net Trabalha como analista político na imprensa, rádio e televisão, em programas como “La Ventana” da Rede SER, “Las mañanas de Cuatro” e “La Noche” do Canal 24 horas. Já ganhou diversos prêmios ao longo da sua trajetória profissional, tais como o Prêmio Jornalismo Digital José Manuel Porquet e o Nicolás Salmerón de Direitos Humanos. @iescolar

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