UNO Março 2017

A ascensão da pós-verdade ou como construir deuses na medida

A própria ideia de pós-verdade talvez possa, à primeira vista, parecer uma moda efêmera após sua eleição como a palavra mais importante de 2016, pelo Dicionário Oxford. No entanto, atrás desse conceito se escondem profundas mudanças que põem em xeque a própria ideia de sociedade, pois se a humanidade caminhou, durante séculos, em busca da “verdade”, agora tende a relativizá-la.

Se a humanidade caminhou, durante séculos, em busca da “verdade”, agora tende a relativizá-la.

Uma das transformações mais importantes da humanidade foi passar de religiões politeístas às monoteístas. Na tradição greco-romana se adoravam a inúmeros deuses, que protegiam cada atividade humana. O surgimento do cristianismo foi um organizador do sentido coletivo, gerando referências “verdadeiras”, onde a Igreja passa a ser central na regulação da vida social e íntima das pessoas, produzindo uma relativa estabilidade na geração da verdade. No entanto, a partir do século XVI, uma alternativa começa a surgir: Copérnico, Descartes e Darwin, entre muitos outros, produziram um novo regime da verdade: a ciência, que deslocava a crença como explicação dos acontecimentos naturais.

 

As “revoluções burguesas” levaram ao fim das monarquias absolutas e ao surgimento dos estados-nação, com o aparecimento de duas novas fontes de “verdades”: a jurídica e a estatística. Também florescem novos atores: a burocracia, o sistema político, a opinião pública e o jornalismo. A opinião pública será o espaço social de legitimação da verdade socialmente aceita.

 

A partir das últimas décadas do século XX, uma mudança radical nas sociedades contemporâneas começa a surgir. A queda do Muro de Berlim e do bloco soviético marcam o fim de um mundo dividido em dois blocos antagônicos. A seguir, a revolução das tecnologias infocomunicacionais, baseadas na Internet, aceleram os tempos de um mundo que se globaliza a uma velocidade sem precedentes. Os meios de comunicação se multiplicam, assim como os suportes que carregam um acúmulo de informações incessantes e discordantes.

 

No entanto, e como um paradoxo, longe de estabelecer novos valores globais, os indivíduos voltaram-se à individuação e à busca da realização pessoal. Uma das viradas que marcam o terreno dessa mudança é a passagem da religião à espiritualidade. Enquanto as religiões buscavam manter um corpo doutrinário rígido, as novas formas de espiritualidade são flexíveis, fomentando o “viver o presente”, mobilizando sentimentos e emoções que encorajam a “auto-realização”, a satisfação instantânea, o “ver-se bem” como passo imprescindível para o “sentir-se bem”.

 

A contrapartida da individualização é a renúncia a sentir-se parte de uma comunidade, fazendo surgir uma crescente apatia pela coisa pública. Ao invés disso, as pessoas tendem a envolver-se emocionalmente, baseado em afinidades, em redes sociais que fortalecem seus pontos de vista e tendem a romper ou reduzir as relações com o mundo off-line. O frágil pertencimento no ambiente social leva os indivíduos a terem um superficial e fragmentado conhecimento do que acontece ali, o que faz com que a grande ferramenta de medição do século XX, a pesquisa de opinião, encontre dados contraditórios, com grandes variações em um curto espaço de tempo e, finalmente, “falhe” em suas suposições, precisamente porque resulta impossível prever o futuro sobre os comportamentos deste novo sujeito, que não se reconhece na história.

 

Como resultado, nas primeiras décadas do século XXI, um ator com um potencial acesso a todas as informações disponíveis vai se constituindo, consumista, insatisfeito e que desconfia da política como ferramenta de transformação, abandonando a ideia de “mudar o mundo”, pensamento predominante nos anos 60 e 70.

 

Nesta nova era, as verdades universais são abandonadas e a ideia da objetividade é rejeitada, inclusive quando sustentada por dados evidentes. Os indivíduos se sentem capazes de construir, de forma independente, suas próprias verdades e crenças – seus próprios deuses, na medida – e de valores que, em outros momentos, pareciam indiscutíveis. As fórmulas anteriores para questionar o corpo social com argumentos e lógicas discursivas caem no vazio – já não significam nada – e passam a ser substituídas por frases curtas e efetivas e imagens sugestivas, como novas fórmulas que estimulam as cordas emocionais e que apontam para o medo e para a ironia.

Nesta nova era, as verdades universais são abandonadas e a ideia da objetividade é rejeitada, inclusive quando sustentada por dados evidentes.

Os críticos da pós-verdade argumentam que este estado de coisas facilita a manipulação e o engano de uma massa propensa a acreditar em falsas notícias (fake news), a considerar rumores infundados como reais e a apoiar posturas extremas com facilidade – como o neonacionalismo e o fundamentalismo religioso –, sem analisar as consequências a longo prazo, termo praticamente eliminado na cultura atual, no entanto, a própria dinâmica social de um mundo incerto prepara o terreno para um futuro inimaginável hoje.

Carlos de Angelis
Sociólogo, analista político e consultor / Argentina
Sociólogo, analista político e consultor. Professor de Sociologia da Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais (UBA). É especialista em estatística aplicada às Ciências Sociais. Pesquisador sobre temas de opinião pública, mídia, questões sociais e culturais. Diretor do Centro de Opinião Pública e Estudos Sociais da Universidade de Buenos Aires. Autor do livro Radiografía del voto porteño (Atuel, 2010) e coautor do livro Investigación social para el análisis de la Opinión Pública y el comportamiento electoral (Editorial Antigua, 2013). Colunista no jornal Diario Perfil e colaborador em meios de comunicação de diversas partes do mundo. [Argentina].

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