UNO Agosto 2013

A América Latina no momento atual da grande crise

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Quando me pedem, como neste número da revista UNO, que escreva sobre a América Latina o primeiro que penso é que, por melhor que a Região esteja agora, ela não pode viver isolada de um mundo submerso em uma crise como não víamos desde a Grande Depressão.

Estamos diante de uma mudança de época, não diante de uma época de mudança. O mundo que superou as graves convulsões dos anos trinta foi construído sobre três grandes pilares: os organismos de Bretton Woods (o Banco Mundial e o Fundo Monetário), as Nações Unidas e, finalmente, o Tribunal de Justiça de La Haya.

Agora, aquele grande mundo está em uma crise muito profunda. Sabemos como começou, mas ignoramos como vai terminar.

O capitalismo continua vigorando. Não há país mais capitalista que a China neste momento. A Rússia e a Índia vão pelo mesmo caminho. Embora tenha que mudar, não foi inventado outro sistema melhor (ou menos pior) que o capitalismo: a sociedade acumulou mais riqueza nos últimos cinquenta anos que em todos os séculos anteriores. É importante reconhecer isso.

A globalização também transformou o mundo, alentada por uma mudança extraordinária da tecnologia, dos transportes, das comunicações, da economia, dos investimentos, das finanças e das empresas.

Estamos diante de uma mudança de época, não diante de uma época de mudança

Na América Latina, em 2000, tínhamos quase 48% de nossa população vivendo na pobreza. Agora o número é menor, é de 30%. Ou seja, estamos gerando uma sociedade de classes médias, embora tenhamos problemas pendentes, que em breve mencionarei.

03Outra novidade é que, enquanto o desenvolvimento se limitava antes ao Norte (principalmente aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão), hoje vemos uma irrupção formidável de economias emergentes (ou emergidas), começando pela China e depois por países como o Brasil, a Rússia, a Índia ou a África do Sul. Dois terços do crescimento econômico do mundo são oriundos dessas economias emergentes.

Falei somente das luzes. As sombras mais preocupantes são o aumento doloroso da desigualdade, da violência ou do crime organizado, que tem muito a ver na América Latina com o infortúnio do narcotráfico.

Outros dois graves problemas são o desemprego –algo que pode destruir toda uma geração de jovens– e a sobredimensão do sistema financeiro internacional. Os bancos hoje movimentam recursos para financiar quarenta e cinco vezes a produção mundial. Tal sobredimensionamento fez com que a engrenagem financeira alimente a si mesma e não esteja financiando a produção real. E isso é o que gerou a crise atual.

Uma última consideração: o mundo capitalista não tem o monopólio da corrupção mas, em grande parte, alimenta-a. O capitalismo, lembremos, nasceu com um grande compromisso moral. O autor de A riqueza das nações, Adam Smith, antes de ser professor de Economia, dava aulas de Ética e Moral.

Estamos diante de uma crise muito complicada, porque é assimétrica. A Europa está padecendo. Os Estados Unidos também, embora nem tanto. Mas não atinge em nada à Alemanha ou à Austrália, e o Japão inclusive está voltando a crescer. Os países da América Latina, em geral, não estão sofrendo com isso. Ou seja, há uma assimetria que não ocorreu durante a crise de trinta.

Nós, os ibero-americanos, valemos mais e somos mais fortes na medida em que continuemos fortalecendo
uma relação que vem de longe e tem pela frente um grande futuro

Também temos um novo sistema de relações internacionais. Vivemos, em última análise, a maior transferência de poder econômico (do Ocidente ao Oriente) na história da Humanidade.

O que dizer sobre o caso concreto da América Latina?

Primeiro que, em termos gerais, não caímos na crise. Isso porque aprendemos a lidar muito bem com a nossa macroeconomia depois de tantos erros. Tal fato se deve ao impacto positivo que teve, e continua tendo, nossa relação comercial com a China. Também porque apreciamos o valor da estabilidade, da abertura ao exterior e do equilíbrio sadio entre o mercado e o Estado. Sobre esse último debate, que nos dividiu durante muito tempo, aprendemos a ser mais pragmáticos.

Nos últimos anos, acumulamos reservas como nunca. A dívida pública da América Latina hoje é inferior a 50% do PIB. E há países que não têm dívida, que são credores, como o Brasil. Há pouco tempo esses dados eram inimagináveis.

A última pergunta, que sempre escuto em diferentes foros da Região, é se essa década pode ser a da América Latina. E a minha resposta é, com toda prudência, que talvez sim, possa ser. Mas vejamos abaixo em quais condições. Se o mundo não enlouquecer. Porque se a China desmorona e a Europa não cresce, fica complicado. Se continuamos fazendo uma boa gestão macroeconômica. Se investimos adequadamente nos âmbitos da educação e da inovação. Se melhoramos nossa produtividade e nossa competitividade. E se, finalmente, continuamos transformando o Estado para que garanta a política social enquanto o setor privado faz seu trabalho com eficiência.

Finalizo apostando no futuro da Comunidade Ibero-americana. O grande capital que une a Península Ibérica à América Latina nãoé somente o comércio: é o das culturas compartilhadas entre povos que falam dois grandes idiomas e que têm um grande acervo em comum.

Continuaremos avançando na próxima Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, que será realizada este ano, entre o dia 16 e 17 de novembro na linda cidade de Cádiz e em pleno bicentenário da Constituição liberal de 1812.

É nada menos que a vigésima segunda Cúpula. Todos os membros da Comunidade apreciam e valorizam essas reuniões de alto nível porque sabem que nós, os ibero-americanos, valemos mais e somos mais fortes na medida em que continuemos fortalecendo uma relação que vem de muito longe e que, a pesar dos desencontros lógicos de toda a relação tem, pela frente, um grande futuro.

Enrique V. Iglesias
Secretário Geral Ibero-americano
Começa sua gestão como Secretário Geral Ibero-americano em outubro de 2005 depois de ter sido durante dezessete anos Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Anteriormente, foi, entre outros cargos, ministro de Relações Exteriores do Uruguai, secretário executivo da CEPAL e presidente do Banco Central do Uruguai. Doutor honoris causa por mais de doze universidades de todo o mundo, recebeu numerosas distinções e reconhecimentos internacionais, entre eles o Prêmio Príncipe de Astúrias e a Grande Cruz de Isabel a Católica, bem como as mais altas condecorações dos países latino-americanos.

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