UNO Agosto 2013

O estado seleção

04_2A confiança dos cidadãos nos representantes políticos e nas instituições democráticas diminui. O poder da soberania nacional, esse conceito que tanto é destacado entre os primeiros artigos de todas as constituições mas que se transformou em papel molhado, é superado pelo controle das organizações internacionais e dos mercados financeiros. As fronteiras se esvaem enquanto a internet e a economia globalizada difundem as particularidades culturais, as dissolvem ou as universalizam: acaba com elas ou as transforma em uma franquia, nos bares de Nova York de ‘spanish tapas’ ou em restaurantes japoneses na Madri dos Astúrias. O Estado nação definido pela Revolução Francesa está em claro retrocesso e se refugia no plano simbólico: no Estado seleção. É no futebol, no basquete, no atletismo ou nas corridas de carros e motos onde as bandeiras nacionais recebem maiores expressões de carinho. O esporte é um novo símbolo, o refúgio da soberania.

Que o esporte reúne grande parte do sentimento romântico da nação, o amor passional pela Pátria, não é algo novo. É assim desde o século passado e para muitos países –ou cidades– a rivalidade esportiva foi substituindo o velho campo de batalha. A alavanca do esporte foi usada como prática por todas as nações. E também abusaram dela. Todo populismo totalitário –desde os Jogos Olímpicos de Hitler até a Copa do Mundo da ditadura argentina– se apoiou historicamente no campo esportivo porque nessas vísceras, na paixão por derrotar o vizinho, encontram-se mecanismos de controle da sociedade extraordinariamente poderosos; é o espetáculo do panem et circenses da velha Roma.

A crise do Estado nação e do conceito constitucional da soberania transformou o esporte na principal referência simbólica da pátria

04No entanto, as causas que explicam o atual auge esportivo não podem ser explicadas atualmente como um mecanismo de controle premeditado por parte de alguns estados – nação que tem seus próprios problemas. Não se trata apenas do espetáculo do esporte tenham mais peso a cada dia –mas também, como era de se esperar, deve-se à revolução da informação que a tecnologia fez possível. A chave está no gradual desaparecimento de outro tipo de elementos da identidade nacional. No caso da Europa, Até a moeda deixou de ser um símbolo pátrio. Diferente de outros momentos da história, o esporte se eleva a pesar do deteriorado Estado nação, mais pelo seu declínio do que pela sua colaboração.

Essa deterioração da identidade nacional está sendo acelerada nos últimos anos devido a dois fatores: O primeiro também se deve à globalização digital e às suas consequências sobre a comunicação e a cultura; basta pensar nas antigas tarifas de telefone, quando ligar para o outro lado do Atlântico por mais de dois minutos era um pequeno luxo. Até a popularização da internet, as fronteiras estavam muito presentes nas telecomunicações. Hoje desapareceram.

O segundo fator, o mais importante, é essa nova grande recessão na qual vivemos. A crise econômica evidenciou para os cidadãos em geral a falta de autonomia dos governos nacionais, a pouca capacidade que os parlamentos nacionais têm para decidir o rumo por si mesmos. A perda de poder por parte dos políticos, das instituições democráticas, sem dúvida começou há décadas. A globalização econômica e os tratados de livre comércio não são uma novidade, nem o FMI ou a União Europeia. No entanto, essas fronteiras só se tornaram visíveis na época das vacas magras, com a crise da dívida soberana originada pelo colapso do sistema financeiro. Há apenas um ano, por exemplo, seria impossível imaginar que a pressão dos mercados, do FMI e da EU pudessem causar uma mudança de governo em um país europeu, que colocaram no comando um técnico escolhido fora, sem passar pelas urnas. Hoje temos dois exemplos no mesmo continente –Grécia e Itália– onde tal situação se deu e onde há pouco tempo teria sido intolerável.

A situação econômica está acelerando a perda de apoio das instituições, uma vez que se evidenciam as limitações dos governos nacionais e a sua falta de autonomia

A reação dos cidadãos ao descobrir os limites da soberania nacional está tendo um duplo sentido: por um lado, os cidadãos se decepcionam com as instituições e as enfraquece ainda mais ao perceber a sua incapacidade para resolver os problemas; por outro, refugia-se na evasão do esporte. É praticamente impossível atualmente encontrar nos jornais uma notícia boa sobre a Espanha, exceto nas páginas de esporte. O mesmo aconteceu na década de noventa na América Latina, a crise econômica acelerou o interesse pelo esporte, que a cada dia reunia mais torcedores no estádio, nas telas, até nas ruas. Quem não lembra, por exemplo, da manifestação massiva em Madri que festejava a conquista da Copa do Mundo de Futebol há dois anos? Naquele dia também acabaram os estoques de bandeiras.

Ignacio Escolar
Jornalista e comentarista político
Fundador do jornal Público e seu primeiro diretor. Autor do blog político mais seguido na Espanha, www.escolar.net Trabalha como analista político na imprensa, rádio e televisão, em programas como “La Ventana” da Rede SER, “Las mañanas de Cuatro” e “La Noche” do Canal 24 horas. Já ganhou diversos prêmios ao longo da sua trajetória profissional, tais como o Prêmio Jornalismo Digital José Manuel Porquet e o Nicolás Salmerón de Direitos Humanos. @iescolar

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