UNO Março 2017

Amigos da verdade: os limites jurídicos das fake news

No Direito não existe pós-verdade, existe a verdade. Não cabem os fatos alternativos, mas unicamente os fatos. E tampouco existem as chamadas fake news, mas as notícias inverídicas.

Na raiz das últimas eleições norte-americanas, o debate acerca do impacto que as notícias falsas têm em nossas sociedades não deixou de ser exacerbado. Vivemos tempos hostis à verdade e à objetividade.

 

A chamada pós-verdade irrompeu o debate público, mas não é um conceito novo, como tampouco as falsas notícias o são: nos encontramos simplesmente diante de pura propaganda, difundida com os fins mais espúrios: manipular a opinião pública ou, simplesmente, obter um rendimento econômico pelo aumento do tráfego nas páginas web, que divulgam esses tipos de “informações”.

 

Embora o acesso universal à informação e à opinião, graças à Internet, devam ser bem-vindos, também fizeram com que os meios de comunicação passassem não apenas a informar e opinar, mas com que qualquer pessoa possa dar publicidade a todo tipo de afirmações, verdadeiras ou não. Daí surgem as fake news – notícias na forma, mas não no conteúdo.

 

Do ponto de vista jurídico, a uma notícia jornalística, necessariamente, deve-se aplicar o juízo de veracidade, o que não implica que uma notícia deva ser verdadeira – infelizmente, desde Platão, sabemos que a verdade é algo resvaladiço, dificilmente alcançável por aqueles que residem na caverna e apenas podem perceber sombras da realidade. Então, posto assim, o que é verdade para o Direito? Quais são os limites da liberdade de expressão e de informação neste contexto?

 

Em termos legais, o problema das fake news se dá quando ocorre um conflito de direitos. Tais conflitos são produzidos entre a informação transmitida e os direitos fundamentais das pessoas afetadas por dita informação, principalmente a honra e a intimidade. A jurisprudência espanhola desenvolveu amplamente os critérios de ponderação para nossos dias. Na verdade, podemos inclusive retomar uma decisão do Supremo Tribunal de 1912, que resolvia um conflito provocado por uma notícia – falsa –, publicada pelo jornal El Liberal, divulgando que um frade havia sequestrado a filha do prefeito e que esta, meses antes, havia dado à luz a um filho seu. O Supremo Tribunal, em termos próprios da época, já declarava que o jornal, por meio da publicação de uma informação que se provou falsa, havia caluniado a jovem filha do prefeito, causando-lhe um dano moral.

 

Nos dias atuais, o Tribunal Constitucional (TC) declara que, em um caso de difamação, deve-se atender: (i) o interesse geral da informação, analisada caso a caso, tendo em conta o contexto da notícia; (ii) a veracidade da informação.

 

A veracidade de uma informação é um ponto-chave que aqui nos interessa. Como já antecipávamos, a veracidade não significa que uma informação seja absolutamente certa, mas, antes disso, derive da diligência que o autor da informação tenha demonstrado em sua averiguação. Assim, de acordo com a jurisprudência espanhola, uma informação seria considerada verdadeira, mesmo que posteriormente se revele errônea, sempre e quando o informador: (i) tenha empregado a máxima diligência profissional exigida, e (ii) tenha levado a cabo um suficiente trabalho de averiguação dos fatos. Esta diligência do informador dependerá, em todo caso, do objeto da notícia, da fonte da notícia ou das possibilidades de confrontar a mesma. Cumprindo estes requisitos, a informação estaria amparada pela liberdade de informação, tal como reconhece a Constituição Espanhola, no artigo 20.1.d).

Em termos legais, o problema das fake news se dá quando ocorre um conflito de direitos

Quanto à liberdade de expressão, esta se vê limitada por aquelas restrições necessárias, em uma sociedade democrática, de proteger a reputação ou os direitos de outras pessoas. Nas palavras do TC, a liberdade de expressão não ampara o insulto. Por esta razão, ainda que as opiniões não estejam sujeitas ao julgamento da veracidade, estes não devem conter conteúdo calunioso, ofensivo ou que dane a dignidade, a reputação ou a honra de uma pessoa, difamando-a. Em todo caso, a mais recente jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na sentença Losantos, revela que a liberdade de expressão dos informadores goza de uma ampla margem para o exagero ou para a provocação – às vezes, ofensiva.

 

Para aquelas manifestações de maior intensidade, o legislador espanhol configurou certos delitos: principalmente as calúnias – consiste em imputar, falsamente, a prática de um delito – ou as injúrias –manifestações intencionais que comprometem seriamente a reputação de uma pessoa. Além disso, o direito penal também pune aquelas manifestações que alimentam o chamado discurso de ódio – com motivações racistas, por exemplo – ou que exaltam o terrorismo e humilham suas vítimas. Neste último âmbito, os tribunais condenaram, recentemente, a autores de certos textos em redes sociais que justificavam a violência terrorista, por violarem gravemente os valores da tolerância que inspiram nosso ordenamento jurídico.

 

Diante do surgimento de novos tipos de notícias, que não cumprem os padrões mínimos de veracidade, devemos enfatizar o papel do jornalismo autêntico – devidamente adaptado aos novos contextos tecnológicos –, como uma espécie de cão de guarda da democracia. Usando as palavras de Thomas Jefferson, precisamente um dos pais fundadores dos EUA – hoje tão ameaçado pela manipulação política: “se me fosse permitido escolher entre um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em escolher o segundo“.

 

Em todo caso, não convém estigmatizar as redes sociais porque uma minoria de seus usuários as utilizam para disseminar informações de veracidade questionável. As redes sociais são uma ferramenta de informação e, sobretudo, um reflexo da nossa sociedade. Não se pode pedir que as redes sociais se convertam em juízes dos conteúdos que nelas são publicados, principalmente porque a legislação europeia na matéria – Diretiva do Comércio Eletrônico – proíbe, expressamente, que se configure legalmente uma obrigação geral de vigilância dos conteúdos que estas acolhem. Na verdade, antes desses problemas, as principais redes sociais já incorporaram, em suas políticas, termos de uso para assegurar o respeito à legalidade e dos princípios citados.

 

A desinformação causada pelas fake news pode ser um problema social, mas tendo em conta as ferramentas que nosso ordenamento tem para proteger a liberdade de expressão e de informação, não convém ouvir os cantos de sereia que clamam por uma maior regulamentação: a exuberância regulatória poderia aportar mais incerteza. Em vez disso, seria desejável melhorar a proteção dos direitos que desfrutamos, assim como meios de Justiça para garantir esta tutela.

Não convém ouvir os cantos de sereia que clamam por uma maior regulamentação: a exuberância regulatória poderia aportar mais incerteza.

Carolina Pina
Sócia do escritório de Propriedade Industrial e Intelectual e corresponsável pela indústria de Media & Telecom no Escritório de Advocacia Garrigues
Licenciada em Direito pela Universidade de Alicante, Mestre em Direito Internacional e Direito Comparado pela City of London Polytechnic, de Londres e pós-graduada em Gestão de Assuntos Públicos pelo ICADE. Recebeu o título de Agente da Propriedade Industrial. Desde 1997 trabalha no Departamento de Propriedade Industrial e Intelectual do escritório de advocacia Garrigues, onde foi nomeada sócia em 2005. Ganhou o Prêmio Internacional Prix Monique da União Internacional dos Advogados (UIA) em 2009. Autora de vários livros sobre direitos de mídia e esportes. Foi recomendada pelos ranking Legal 500 e Chambers em Propriedade Intelectual, Marcas, Esportes, Tecnologia da Informação e Meios de Comunicação. [Espanha]

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