UNO Março 2017

No pós das verdades

Uma vez, seis sábios hindus se reuniram, curiosos para saber como era um elefante. Sofrendo de cegueira, eles decidiram ir em busca do dito paquiderme para pôr fim às suas dúvidas. Após uma longa viagem, eles encontraram um enorme e manso elefante. Cada um dos sábios se aproximou do animal, disposto a tocá-lo. O primeiro acariciou sua tromba, que logo comparou com uma serpente. O segundo tocou suas presas, o que o fez pensar em uma lança. O terceiro passou a mão no peludo rabo, dizendo que se tratava de uma vassoura. Assim, seis diferentes descrições do mesmo animal foram dadas nesta tarde. Todos pensaram conhecer o real aspecto do elefante, sem entrarem em acordo. Ao trocar de posições, perceberam que havia mais de uma verdade para realmente conhecer o animal.

 

O objetivo desta breve fábula consiste em ilustrar e lembrar que a noção sobre a verdade e sua busca são tarefas complexas e existenciais do ser humano. Na realidade, a verdade requer a análise dos fatos de modo objetivo, a argumentação de evidências, algumas exigências de grande valor, que profissionais de qualquer área devem saber conservar.

 

Nos últimos meses, inúmeros meios de comunicação passaram a debater a crescente desvalorização da verdade, referindo-se às narrativas em discursos políticos, influencers e meios de comunicação que apelam para o sensacionalismo e a conveniência na seleção das informações. Este fenômeno, batizado de pós-verdade, foi definido pelo Dicionário Oxford como a circunstância em que os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública que as emoções e as crenças pessoais, concedendo ao termo o prêmio de palavra do ano de 2016. Ligada a ela, nas últimas semanas também surgiram conceitos como as “verdades alternativas” e as “notícias fictícias”.

 

Cabe lembrar que a banalização da mentira não é nada novo século XXI. No entanto, é fato que as profundas raízes da pós-verdade na sociedade da informação e sua efervescência em um contexto de descontentamento político e desilusão diante da globalização, em alguns casos, descarrilaram.

 

Atualmente, o acesso a conteúdo informativos, assim como o seu imediatismo e volume, não têm precedentes. O impacto da digitalização no mundo das comunicações significou uma revolução na forma como as pessoas produzem informações. Um exemplo notável desta democratização midiática é o jornalismo cidadão. Do mesmo modo, também mudou a forma como se consomem e se digerem as notícias. De acordo com um estudo publicado em 2016 pelo PEW Research Center, 62% da população americana utilizaria as redes sociais para se manter conectada com a atualidade. O paradoxo é que, apesar do fluxo incessante de notícias, podemos estar mais desinformados do que antes.

 

Em setembro passado, o jornal The Economist dedicou sua cobertura “Art of the Lie” à pós-verdade. Entre as páginas desta edição, vale destacar um gráfico[1] que mostra como os conteúdos do Facebook com falsas informações são compartilhados o mesmo número de vezes que aqueles com informações corretas. Este fenômeno torna-se ainda mais alarmante quando consideramos a influência dos algoritmos e as pressões financeiras. Os algoritmos geram ecossistemas virtuais, que refletem opiniões correlacionadas, em muitos casos fazendo com que as pessoas criem a sua própria verdade. Enquanto isso, os campeonatos para alcançar o primeiro lugar nos motores de busca premiam a quantidade de likes. Como afirma Katherine Viner, redatora-chefe do jornal The Guardian, em seu artigo: “Como a tecnologia rompeu a verdade“: privilegia-se a viralidade em detrimento da qualidade e da ética[2].

 

A denominada pós-verdade permeou as eleições presidenciais nos Estados Unidos e até mesmo antes, o referendo no Reino Unido. A OCDE viveu muito perto deste último acontecimento.

 

Apresentamos um relatório[3] na London School of Economics, meses antes da votação, sobre quais seriam as consequências econômicas do Brexit para o Reino Unido. O que aconteceu? Veículos sensacionalistas distorceram nossas estatísticas para reforçar suas posições sobre uma política migratória restritiva e a necessidade de “recuperar o país”. Desde a campanha do Leave, foi possível observar que “cidadãos de bem” já não confiavam nos “especialistas”, incluindo os da OCDE, aos quais buscaram deslegitimar, alegando que a dita organização havia sido financiada pela UE.

 

Desta experiência pudemos tirar lições importantes.

 

A primeira é que a autocrítica é necessária. Nos perguntamos se não erramos ao produzir um relatório denso e repleto de dados econômicos, em uma corrente de apelos emocionais e esperançosas (mas ilusórias) promessas. Fomos pregar aos convertidos indo a Londres, ao invés de ter levado nossa mensagem aos cidadãos mais céticos, além da grande metrópole. Não demos suficiente ênfase aos avanços positivos na qualidade de vida dos cidadãos britânicos, ligados à associação do Reino Unido na UE. Chegou o momento de desenvolver dados objetivos mais relevantes para as sociedades que têm sido testemunhas de uma crescente desigualdade e falta de oportunidades. Fundindo um chamado à alma e à lógica das pessoas.

 

A segunda lição é que devemos dedicar mais tempo a uma vertente frequentemente esquecida da comunicação: escutar. Interessar-se pelo que o outro vê e transmitir, mas também receber. A tecnologia cívica e as plataformas digitais, como o Índice para uma Vida Melhor[4], da OCDE, estão nos permitindo entender melhor as prioridades das pessoas em matéria de bem-estar, por meio da participação e do engajamento cívico. Ser mais inclusivo para ser mais relevante e, desse modo, conectar nosso trabalho às aspirações e inquietações das pessoas.

Devemos dedicar mais tempo à vertente frequentemente esquecida da comunicação: escutar.

Em resumo, frente ao excesso de ruído midiático e à falta de confiança, aprendemos a ser melhores guias e a nos deixar guiar. Aproveitar a oportunidade oferecida pela digitalização para canalizar nossa inteligência coletiva e, assim, evitar estar à deriva, rumo à estupidez coletiva.

Aproveitar a oportunidade oferecida pela digitalização para canalizar nossa inteligência coletiva e, assim, evitar estar à deriva, rumo à estupidez coletiva.

[1] Art of the Lie, The Economist. 10 de setembro de 2016.

[2] How technology disrupted the truth, The Guardian, 12 de julho de 2016.

[3] Relatório: The Economic Consequences of Brexit. A Taxing Decision. OCDE, 28 de abril de 2016.

[4] Índice para uma Vida Melhor, OCDE.

Anthony Gooch
Diretor de Relações Exteriores e de Comunicação da OCDE / Espanha-Reino Unido
Ingressou na OCDE em 2008, como responsável estratégico pelas relações exteriores e pela comunicação. Coordenou o processo de reflexão que culminou na redefinição da missão da organização. Anteriormente, durante 13 anos, trabalhou na Comissão Europeia como negociador das relações comerciais entre a União Europeia-América Latina e como assessor especial de Pascal Lamy. Liderou os escritórios de Mídia e Diplomacia Pública da Comissão nos EUA e no Reino Unido. Tem Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais pela Sciences Po, de Paris, e Mestrado em História Moderna pela Universidade de Cambridge. [Espanha - Reino Unido].

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