UNO Julho 2017

A américa latina deve se atrever a mudar

A América Latina enfrenta hoje uma combinação de desafios internos e externos que exigem pensamento estratégico e ação coordenada. As mudanças no ambiente global obrigam nossos países a buscarem alternativas
para impulsionar seu crescimento, transformar sua estrutura produtiva, a diversificar seus mercados e estimular a demanda doméstica, sem
deixar de atender aos desafios sociais. A região pode transformar esta situação em uma oportunidade, se aproveitar o momento para realizar as reformas pendentes, aprofundar sua integração regional e estreitar suas alianças com parceiros no Atlântico e no Pacífico.

Muito tem sido escrito sobre os efeitos que a nova administração dos Estados Unidos terá para a América Latina. Neste momento, o que temos visto é um aumento da incerteza, em um cenário internacional, por si só, já incerto e volátil. No aspecto econômico, o mundo ainda não se recuperou da crise de 2008-2009. Os níveis de crescimento nesta década, até agora, têm sido os mais baixos dos últimos setenta anos. O comércio mundial se encontra estagnado e tem crescido abaixo do Produto Interno Bruto (PIB) dos últimos cinco anos, revertendo uma tendência histórica e levantando a pergunta sobre qual será o motor do desenvolvimento no futuro. Os fluxos internacionais de Investimento Estrangeiro Direto (IED) caíram entre 10% e 15% em 2016 e é difícil pensar que consigam recuperar-se no curto prazo.

Muitos países latino-americanos são altamente vulneráveis a possíveis mudanças na política comercial americana: todos os países da América Central e a República Dominicana destinam aos Estados Unidos mais
de 40% de suas exportações. O México destina mais de 80%. Os países da América Central também são dependentes das remessas do exterior, que respondem por 18% do PIB de Honduras, 16,6% do PIB de El Salvador e 10,3% do PIB da Guatemala (em comparação com apenas 2, 3% do México).

A ameaça do protecionismo nos Estados Unidos se junta ao impacto do Brexit e à continuada transição da China em direção a parcelas de crescimento mais modestas, com um modelo econômico mais focado no mercado interno. Os preços das commodities experimentarão, este ano, uma ligeira melhora, mas ainda muito longe dos níveis pré-crise.

Esta deterioração das condições externas ocorre justo quando a América Latina emerge de dois anos de contração econômica. Prevê-se que até 2017 a região alcançará um crescimento de cerca de 1,1%, graças à recuperação das principais economias, como Brasil e Argentina, ainda que com questionamentos sobre a sustentabilidade da recuperação do Brasil.

Vários países latino-americanos estão em posição muito vulnerável no caso de possíveis desvios nas políticas comerciais dos Estados Unidos, pois mais de 40% das exportações de todos os países da América Central e da República Dominicana são para os Estados Unidos

Os níveis de endividamento da América Latina encontram-se em torno de 38% do PIB, o que levanta preocupações sobre o aumento do custo
de financiamento externo, como consequência do fortalecimento do dólar e dos aumentos das taxas de juros por parte da Reserva Federal dos Estados Unidos. A situação pode se agravar diante do aumento do déficit fiscal americano, decorrente dos cortes de impostos anunciados, da desregulamentação e da expansão do investimento em infraestrutura pública prometidas pela nova administração.

Além do fator econômico, preocupam também os valores subjacentes às mudanças no cenário internacional. O retorno da retórica nacionalista e xenófoba, com sinais da fragmentação e da polarização em diferentes partes do Ocidente, minando os princípios que sustentam o sistema multilateral e que a América Latina defende a uma só voz.

Milhões de latino-americanos podem ser diretamente afetados por essas atitudes excludentes. Mais de 17% da população estadunidense se considera
hispânica, com uma grande percentagem de migrantes, incluindo cerca de 8 milhões de migrantes ilegais. Quatro das cinco principais origens da imigração ilegal nos Estados Unidos são de países latino-americanos (México, Guatemala, El Salvador e Honduras).

Como se pode observar, a América Latina poderia estar particularmente exposta aos efeitos da política externa estadunidense. Isso não significa dizer, no entanto, que careça de opções e ferramentas. Longe de afundar-se na paralisia, a região deve aproveitar esta oportunidade para realizar reformas adiadas no passado e explorar novas alianças.

A volta da retórica nacionalista e xenofóbica, com sinais de fragmentação e polarização em diferentes partes do Ocidente, prejudica os princípios que o sistema multilateral apoia e que a América Latina defende com voz uníssona

No âmbito doméstico, devemos elevar a competitividade de nossas economias, apostando na sociedade digital, no conhecimento, na pesquisa, na
ciência e na tecnologia, diversificando produtos e mercados, investindo em infraestrutura e logística, e melhorando a qualidade dos nossos sistemas
educacionais. Necessitamos de uma revolução na produtividade que nos leve a transformar o modo como as nossas empresas operam, tornando-as
mais inovadoras e vinculadas às cadeias de valor. Os grandes avanços que a América Latina vem realizando em matéria de digitalização deve ajudar-nos a encadear as pequenas e médias empresas na economia global, por meio de plataformas tecnológicas, contribuindo para a geração de emprego e para o desenvolvimento inclusivo.

Este momento deve servir também para aprofundarmos nossa integração regional. O comércio intrarregional alcança apenas 15% das exportações
latino-americanas, embora existam mais de 60 acordos comerciais vigentes entre os países da região. É hora de aproveitar estes acordos e fazê-los
convergir. Particularmente, destaca-se o potencial de uma possível convergência entre a Aliança do Pacífico e do Mercosul, dois espaços que, juntos, representam mais de 80% da população regional e mais de 90% do PIB e dos fluxos de investimento. Nossa região é bioceânica, não faz sentido separá-la entre o Atlântico e o Pacífico.

O contexto global é complexo e desafiador. Os próximos anos colocarão à prova a nossa capacidade de agir estrategicamente, estabelecer prioridades
e comprometer-nos com objetivos claros. A América Latina não pode limitar-se a ser refém das circunstâncias: deve criá-las. Deve confiar em si mesma e construir sobre as suas próprias fortalezas. Em vez de esperar passivamente o próximo sinal dos Estados Unidos, enviemos o nosso próprio sinal: uma região unida, ousada, disposta a mudar sem abandonar seus valores.

A América Latina não pode limitar-se a ser refém das circunstâncias: deve criá-las

Ao mesmo tempo, devemos potencializar nossa relação com parceiros estratégicos. Em recentes reuniões com líderes da Europa e da América Latina, todos manifestaram seu desejo de reforçar os seus vínculos com a região. De imediato, o objetivo prioritário é a aceleração das negociações entre a União Europeia e o Mercosul, a atualização do acordo entre o México e a Europa e a continuação do processo de normalização das relações entre a União Europeia e Cuba que, em dezembro, assinaram um Acordo de Diálogo Político e de Cooperação. A Espanha pode desempenhar uma liderança muito importante nesta área e assim tem compreendido o presidente Rajoy.

Rebeca Grynspan
Secretária-Geral Ibero-americana
Economista e Ex-Vice-presidente da Costa Rica, foi eleita Secretária Geral Ibero-americana por unanimidade em 24 de fevereiro de 2014, na Cidade do México. Antes de sua nomeação, foi Secretária-Geral Adjunta das Nações Unidas e Administradora associada do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). De 2006 a 2010, Grynspan foi Subsecretária-Geral da ONU e Diretora Regional para a América Latina e o Caribe do PNUD. Anteriormente, foi Diretora da Sede Sub-regional da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) no México e Vice-Presidente da Costa Rica entre 1994 e 1998.

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