UNO Julho 2023

A cultura: chave para um relacionamento horizontal

Nas duas margens do oceano que separa a Europa da América Latina ocorre uma coincidência: é chegada a hora da relação transatlântica ser uma prioridade para ambas as regiões e a Presidência do Conselho da União Europeia que a Espanha terá em mãos durante o segundo semestre de 2023 é a oportunidade valiosa para que isso aconteça.

É também uma oportunidade que não deve ser desperdiçada para superar a assimetria milenar que os quadros de cooperação oferecem, quase por padrão, a uma relação por vezes paternalista, hierárquica e vertical que a Europa tendia a exercer com os países latino-americanos. 

Quase ninguém duvida que a involuntária situação pós-pandêmica e de guerra acelera a refundação desse vínculo, que pode encontrar na cultura a única janela possível, por enquanto, para a horizontalidade que a América Latina exige.

Fora da rigidez dos caminhos institucionais, o foco na dimensão cultural permite um olhar mais transversal sobre a forma como a América Latina e a Europa se tratam sem formalidades. E seria maravilhoso se eles pudessem continuar fazendo isso.

Talvez porque gerenciar a cultura fora das vias institucionais permite evitar a burocracia. 

Ou talvez porque a vitalidade resiliente de uma terra castigada ciclicamente por pragas políticas e econômicas que deixam feridas e cicatrizes no seu tecido social, como a América Latina, se traduz cada vez mais em iniciativas artísticas que brilham na Europa e reforçam uma tendência: a cultura é a área em que melhor se aplica a transversalidade almejada pelos latino-americanos que apostam em um amplo multilateralismo com os europeus, mesmo evitando os tiques da globalização.

O foco na dimensão cultural permite um olhar mais transversal sobre a forma como a América Latina e a Europa se tratam sem formalidades. E seria maravilhoso se eles pudessem continuar fazendo isso

Prêmios literários, curadorias nos principais espaços das artes plásticas, palmas em festivais de cinema e em shows: o intercâmbio e consagração de vozes latino-americanas na Europa e perspectivas europeias nos países da América Central e do Sul já falam de uma abordagem estratégica de integração em que o paradigma é o dos iguais. 

Também fazem parte da faceta multicultural que define as sociedades de nosso tempo.

“Estou pleno com a Espanha”, disse, por exemplo, o poeta venezuelano Rafael Cadenas, quando em abril deste ano recebeu em Madri o Prêmio Cervantes 2022, a mais alta distinção de letras em espanhol. 

Ou o “Sempre me sinto um latino-americano em Barcelona” do catalão Joan Manuel Serrat, que reservou cinco shows em Buenos Aires em sua turnê mundial de despedida de Buenos Aires, cidade que o cantor mais pôde desfrutar naquela despedida.

A América Latina não deve ser apenas um fornecedor confiável que permita à Europa se desvencilhar cada vez mais de certas dependências de potências politicamente incorretas, como a Rússia hoje, ou perigosamente em ascensão, como a China.

Não é de estranhar que o espaço onde se encontram mais programas de cooperação ibero-americana seja precisamente, por seu caráter transversal, da cultura

Não é de estranhar que o espaço onde se encontram mais programas de cooperação ibero-americana seja precisamente o da cultura. Pela sua transversalidade na hora de gerar um capital social de coesão entre as comunidades que compartilham, por exemplo, laços históricos como a Europa e a América Latina.

Por outro lado, a dimensão cultural é, quase exclusivamente, o que permite a superação do imaginário latino-americano que vê no horizonte europeu a estabilidade e o abrigo que quase nunca conseguiu em casa, aquela região mais agreste do que macia e que continua a ser a terra mais desigual do planeta.

Formais ou informais, as políticas de cooperação cultural são, por natureza, horizontais. Também apostam no benefício mútuo e na troca enriquecedora para ambas as margens.

Em Desafios das relações culturais entre a União Europeia e a América Latina e o Caribe, publicação financiada pelo programa de pesquisa e inovação Horizonte 2020 da União Europeia, o diagnóstico do intercâmbio cultural entre os dois continentes levanta arestas que, à primeira vista, podem passar despercebidas.

“Assumimos as relações culturais entre a União Europeia e a América Latina e o Caribe sem considerar a elaboração de uma ideologia e o efeito que ela tem em nossa percepção”, diz o artista plástico mexicano e curador Francisco Guevara, especialista em gestão e planejamento de projetos, cooperação no domínio da educação, da ciência e da cultura. “Muitas vezes, as trocas culturais podem incorporar uma representação fantasiosa de troca mútua e reciprocidade, e a cooperação torna-se então cooptação e apropriação, especialmente em residências artísticas onde a localidade e a mobilidade desempenham esse papel”, acrescenta.

Guevara destaca um aspecto interessante: “Por isso, qualquer debate sobre mobilidade ou intercâmbio cultural, entre a União Europeia, ou mesmo os Estados Unidos, e a América Latina e o Caribe ficará incompleto se não forem consideradas as implicações ideológicas”, diz. Os efeitos da ideologia são profundos e multidirecionais, afetando a todos, especialmente quando várias ideologias se cruzam para criar diferentes percepções sobre gênero, classe, raça, cultura, etc., em um determinado lugar e contexto”. Deliciosamente exagerado e teatral, o escritor e jornalista canário Juan Cruz costuma dizer, por exemplo, que “sem o boom latino-americano, hoje seríamos outros”. 

E apesar de hoje se questionar o termo boom que definiu o fenômeno literário e editorial dos anos 1960, é inquestionável que o realismo mágico daquela literatura escrita por poucos ungidos (como se fez sentir o colombiano Gabriel García Márquez, o argentino Julio Cortázar, o peruano Mario Vargas Llosa, o mexicano Carlos Fuentes ou o chileno José Donoso, entre outros) marcaram por alguns anos o pulso da literatura dos dois lados do Atlântico.

Foi ativado um redesenho da relação entre América Latina e Europa em que ambas as regiões se olham nos olhos e se colocam no mesmo degrau

Aquele exotismo do gene latino-americano que poderia ser atraente por ser distante e improvável em uma Europa pragmática estava dando lugar a uma interação mais simétrica, facilitada por agentes culturais que estavam ativando um redesenho da relação entre América Latina e Europa em que ambas as regiões se olham nos olhos e se colocam no mesmo degrau. 

“Diferentemente iguais”, promovia aquela primeira campanha de cooperação cultural que, em 2017, a Secretaria Geral Ibero-Americana lançou nos 22 países que a compõem. Que a relação transatlântica reflita europeus e latino-americanos tão diferentes quanto iguais. Trata-se disso.

Marina Artusa
Correspondente do Clarín na Espanha
Começou no Clarín como estagiária. Editou a revista Viva e, desde 2012, é correspondente na Europa. Hoje, de Madri. Tem mestrado em jornalismo pela Universidade de Columbia e lecionou na Universidade de Nova York. Recebeu uma bolsa de estudos da Comissão Europeia para fazer um doutorado na Università di Bologna, na Itália. Em 2019, o Foro de Periodismo Argentino (FOPEA) lhe concedeu o Prêmio Principal de Jornalismo Investigativo.

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